sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Maria João Pires no país dos miniaturistas...

     Chegará o dia em que os meus netos, assim o creio, hão-de ouvir falar de Maria João Pires. Eu tive o privilégio de a ter visto. A primeira vez, visão que me impressionou, foi a meados da década de 80 (não sei precisar o ano) num concerto na cidade de Évora. Figura frágil, parecia esvoaçar naquele vestido fluido que fez da sua entrada em palco um deslizar. Fixei essa imagem e sempre que me lembro dela vejo-a nesse vestido longo e leve, cor de céu a anoitecer, a dirigir-se ao grande piano ao qual se abraçou e com o qual se agigantou. 
    Sempre me impressionou em todos os aspetos... a sua figura, a sua beleza, a sua expressão, as suas ideias, a sua sensibilidade, o seu talento. Para mim, desde muito cedo, reunia tudo o que eu poderia pensar acerca do que era um artista. A personificação da arte. Nunca me dediquei a pensar o quanto poderá ter esta visão de ingenuidade e idealismo. De qualquer modo, nunca me senti desiludida.
     Maria João Pires é uma pianista de renome mundial, reconhecida internacionalmente como das maiores intérpretes de música para piano, particularmente clássica e romântica. 
    Acho que teve um sonho. Um sonho lindo. Maria João desenvolveu um projeto pedagógico em Belgais, com crianças de um meio eminentemente rural. Belgais era uma aldeia a cerca de 20 Km de Castelo Branco, bem longe da capital e de toda a sua poluição (literal e metafórica). As coisas não acabaram bem. Coisas deste género, neste país, dificilmente acabam bem. Muitas nem sequer começam. Aqueles que as podiam levar a cabo têm de deixar o país, simplesmente por não terem nele espaço...Às vezes de um modo natural, outras de um modo mais dramático e sofrido.        
      Quanto à música clássica, continuamos a ser um país "muito periférico", nas palavras de Artur Pizarro (http://upmagazine-tap.com/pt_artigos/artur-pizarro-toque-de-genio/) ou um país "onde só se tolera miniaturas", em que "o pequenino basta-nos". 
   "Olha, vais ter grandes problemas neste país. Nasceste num país de miniaturistas", teriam sido palavras de João de Freitas Branco ao então pequenino (literalmente...) António Victorino de Almeida, na altura com 6/7anos... (cf. Programa Entre Tantos, da TVI, em  http://tviplayer.iol.pt/programa/entre-tantos/5b4484e70cf2013c4279817e/video/5b6f57290cf282952f039677, no final, aos 23')
  
   O sonho de Belgais morreu. Atualmente Maria João Pires não vive em Portugal. Fixou residência e tem também cidadania brasileira.
     Deixo aqui a interpretação de Maria João Pires de um concerto célebre de Mozart, o Concerto nº 21, K. 467. Chegará o dia em que os meus netos, assim o creio, o hão-de ouvir. Neste caso, considero a filmagem, também, admirável. O preto e branco, a focagem no seu rosto belíssimo, na sua expressão, tanto quando toca como quando aguarda a entrada, toda a filmagem, incluindo a dos outros instrumentistas, é profundamente expressiva. Este filme é de Adrian Marthaler, como informa o autor da publicação no youtube, e revela uma obra de artista. Consegue acompanhar o concerto, sem provocar ruído ou distração. 

Espero que o youtube não retire este link...https://www.youtube.com/watch?v=NMQXIH0FH-E




Nota - Sobre Belgais, encontrei um texto muito interessante de Mário Castrim, datado de 2000, dirigido a um público juvenil em http://www.audacia.org/cgi-bin/quickregister/scripts/redirect.cgi?redirect=EEuZplApklWtMNWLpN. Curiosamente, numa revista que acompanhou a minha infância, creio que desde o seu início, em 1966, a revista Audácia.

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